Alaor Macedo merece ser tema de um samba-enredo igual aos que ele compôs para escolas de samba de Salvador (Filhos da Liberdade e Diplomatas de Amaralina) e do Rio de Janeiro (Unidos da Tijuca, Alegria de Copacabana e Salgueiro), entre 1962 e 1991. A primeira estrofe, contaria as origens do filho do ator Lídio Silva, que ganhou notoriedade nos filmes de Glauber Rocha, e da pianista Ondina Macedo. Resumiria as brincadeiras de criança no Fuísco de Cima, no Barbalho, os primeiros passos como marceneiro aos 8 anos e falaria das relações de parentesco com Mestre Didi, primo de seu pai, e Mãe Senhora, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá e uma das mães de santo mais importantes do Brasil.
O enredo prosseguiria mostrando seu contato com o samba, as primeiras composições, os dotes musicais e a maior aventura: a decisão de ir para o Rio de Janeiro para tentar a vida como cantor. Esquentaria com as histórias de bastidores envolvendo banqueiros de jogo de bicho, disputas acirradas – às vezes definida pelo poder das armas – em concursos de samba e a ida para os Estados Unidos, onde Alaor se casou e fundou a The Big Family, escola de samba que reunia os brasileiros, em Washington.
Na última parte, a fundação da Lira Imperial do Samba, a laranja verde e branco de Nazaré, e a epopeia de ressuscitar os desfiles das escolas de samba de Salvador, iniciativa que arranca de entusiasmados elogios a votos de desconfiança. Mas como letra de samba é para quem sabe, vamos contar essa história em texto jornalístico.
A única escola de samba em atividade em Salvador foi fundada no dia 29 de março de 2006. As cores saíram da cabeça do seu criador, sem nenhuma justificativa, mas inconscientemente retratam a Diplomatas de Amaralina (laranja) e a Império Serrano (verde e branco), que batizará a agremiação. O símbolo também tem uma junção de elementos tradicionais – a coroa e o surdo –, com um detalhe para não deixar dúvida de sua baianidade: o Elevador Lacerda, incluído no logo por Lucas Batatinha, filho do cantor e compositor Batatinha.
O que torna a escola peculiar é que desde a sua fundação foram feitas cinco apresentações, nenhuma delas durante o Carnaval. Também surpreende o fato da sede, uma bela casa de 408 metros quadrados, dois andares, sete salas e dois salões, ficar em uma rua (a Limoeiro, em Nazaré) repleta de hospitais e clínicas, o que impede a realização de ensaios e eventos barulhentos. É dessa trincheira que Alaor batalha para concretizar seus projetos para revitalizar o desfile das escolas de sambas baianas.
Dali, articulou a gravação do CD “Abram Alas pro Samba”, reunindo ex-compositores de antigas escolas baianas e jovens talentos. A princípio, foram prensadas cópias promocionais, mas o objetivo é que o disco comece a ser vendido em larga escala três meses antes do Carnaval, seguindo o exemplo do que é feito no Rio de Janeiro.
Outra conquista do paciente e perseverante Alaor Macedo é a criação da “Esquina do Samba“ num reduto dominado pelos trios elétricos e o axé music. O projeto consiste na instalação de barracas nas cores da Juventude do Garcia, Calouros da Barra, Filhos do Tororó, dentre outras, em torno do prédio em que Alaor mora e é síndico, na confluência da Avenida Sete e a rua Afonso Celso, no Farol da Barra. Foi desenvolvido pelo próprio compositor que aprendeu a operar o programa AutoCAD, usado por arquitetos, a fim de criar um ponto de encontro para sambistas e uma fonte de renda – o comércio de alimentos e bebidas – para as comunidades das antigas escolas. Com o patrocínio de uma cervejaria, começa a funcionar na folia deste ano.
Convicto que é preciso “começar pela a estrutura e não pelo batuque”, o ex-marceneiro sonha um sambódromo, no Comércio; um centro de documentação e oficinas de formação de artistas plásticos, compositores e músicos, principalmente tocadores de cuíca, tamborins e frigideiras, que, segundo ele, entraram em processo de extinção com o fim das escolas. Tudo isso bancado pela iniciativa privada: “Estou cansado de ouvir as pessoas dizerem vamos tirar um dinheiro do Estado para fazer as escolas desfilarem. Ora, os governos têm que gastar dinheiro com outras prioridades: saúde, educação e segurança”, repete Alaor, confiante em sua experiência na “The Big Family, que conseguia financiar seus próprios desfiles.
Por suas ações e declarações, Alaor se transformou em um “mito” para o secretário estadual de Cultura, Márcio Meirelles. “A proposta dele é genial. Ele é um cara inspirado, instigador. Se qualificou como gestor cultural e defende o retorno das escolas, o que precisa acontecer. Vi uma apresentação da Lira do Samba, na Praça Municipal, e foi deslumbrante. Estamos dispostos a criar um programa para apoiar a iniciativa, se houver demanda da sociedade”, exalta Meirelles.
A construção do mito - No tempo em que as escolas desfilavam entre o Campo Grande e a Praça da Sé, onde passavam por um palanque para serem avaliadas por jurados, Alaor, aos 20 anos (1968), fez sua estreia como compositor dos Diplomatas de Amaralina e ficou em segundo lugar com o samba-enredo “Descobrimento do Brasil”.
- Naquela época era muito difícil alguém de fora da comunidade vencer a competição. Fiquei com os Diplomatas até 1972. Era muito respeitado, mas não ganhava nada. Foi aí que surgiu o convite para ser intérprete do samba da Juventude do Garcia, ao lado de Roque Fumaça e Salvador Oliveira. A Juventude já tinha vencido três campeonatos consecutivos e lutava pelo quarto. Resolvi me mudar – recorda.
Logo depois, diante da decadência das escolas – o último e melancólico desfile ocorreu em 1976 e foi definido pelo sambista Nelson Rufino como “degradante” – Alaor Macedo voltou para as artes da marcenaria e manteve o lado artístico, cantando em clubes como a Associação Atlética, Português, Yatch e Espanhol. Pouco para quem queria ganhar o mundo.
Em 1979, numa sexta-feira chuvosa, o ousado baiano desceu na rodoviária do Rio de Janeiro com um saco às costas, contendo poucas roupas, um colete para usar em futuras apresentações e um berimbau. Os bolsos estavam vazios. Sem saber o que fazer, pegou um ônibus. Na primeira oportunidade desceu pela porta dos fundos, sem pagar, no Rio Comprido, bairro entre a Tijuca e o Estácio, bem próximo do local onde surgiu, em 1928, a primeira escola de samba do Rio, a Deixa Falar.
A sorte sorriu para Alaor 24 horas depois de conseguir alugar um quarto na Avenida Paulo de Frontin, com a promessa de efetuar o pagamento em três dias. Ao conversar com a dona da pensão e se identificar como cantor, foi aconselhado a ir ao clube Minerva (hoje Helênico), onde costumavam se apresentar Beth Carvalho, Jovelina Pérola Negra e Martinho da Vila. Lá, rejeitou a paquera de uma mulher que não considerou atraente, mas mudou de ideia quando ela subiu no palco e soltou a voz: era a cantora Mariúza, nome artístico de Marilza da Conceição Aparecida, que faria carreira na Europa. Foi ela quem apresentou o futuro presidente da Lira do Samba a Pepe, dono do clube, que o contratou no mesmo dia.
A primeira tentativa de voltar a compor para escolas de samba ocorreu em 1980, na Unidos da Tijuca, que tinha o enredo sobre o industrial Delmiro Gouveia. Mais uma vez, Alaor foi vice. “A disputa foi muito acirrada, os sambas voltaram ao palco três vezes para o desempate. E foi decidido no revólver. Deram a vitória para Adriano Adauto e o pessoal do morro do Borel”, lastima, mesmo sabendo que naquele ano a Tijuca foi campeã do segundo grupo e voltou à elite.
Experiências envolvendo brigas, banqueiros de jogo do bicho e jogadas de marketing na disputa de sambas-enredos passaram a ser rotina na vida de Alaor. Ao mesmo tempo as premiações pelas conquistas subiam – hoje, segundo ele, chegam a R$ 300 mil para cada compositor.
Em 1987, depois de ter trabalhado como marceneiro do Hotel Meridien, onde também fez shows ao lado do apresentador Miele, o já experiente compositor foi redescoberto pelos integrantes da Alegria de Copacabana, escola fincada entre os morros do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, quando fazia a leitura da homilia numa cerimônia na Igreja da Ressureição.
Com o samba-enredo Palmarizando, a vitória era certa. Alaor Macedo chegou a ser informado pelo presidente da agremiação que seria o campeão uma semana antes da decisão. Não contava, porém, com a estrepolia de seu parceiro Bolão, com quem dividiu a composição, após aprender a duras penas que sozinho e sem pertencer à comunidade perderia de novo.
Quando se apresentava na finalíssima, Alaor foi retirado do palco após cantar o primeiro verso – “Cheguei na força de Zambi”. Levado à presença do traficante Tonzé, foi informado que Bolão tinha vacilara ao arrombar um carro diante da quadra de ensaio. O veículo pertencia ao banqueiro de jogo de bicho Waldemir Paes Garcia, o Maninho, patrocinador da escola. Bolão levou uma surra e só não foi morto porque era querido pela comunidade. E Alaor, diante de um homem de confiança de Maninho, ouviu que como não tinha nada a ver com a história, poderia continuar freqüentando a Alegria de Copacabana.
- Eu só queria era sair de lá. Disse que voltaria, mas não apareci mais. Também ignorei o convite para ir ao Salgueiro – rememora.
Meses depois, num encontro fortuito na Zona Sul, Arizão, homem ligado a Maninho, levou Alaor para ver pela primeira vez o ensaio da vermelho e branco. Era o início de uma parceria vitoriosa. Os dois ganhariam por três anos consecutivos a disputa de samba-enredo do Salgueiro.
Em 1988, a primeira vitória veio com Em busca do ouro, mas não foi fácil. O grupo derrotado decretou guerra, literalmente, chegando a marcar um duelo com pistolas. Alaor não compareceu para o tiroteio. A solução encontrada pela diretoria para apaziguar a situação, foi fundir as letras e dividir o prêmio entre nove compositores.
- A composição é quase toda minha. Do samba de Mauro Torrão ficou apenas o refrão “Banto / D'angolo / Crioulo, muito axé / Eis o milagre do café” – revela.
Por não ter ido disputar o samba à bala, Alaor foi considerado frouxo pelo violento Maninho, que morreria assassinado com seis tiros de fuzil, numa emboscada, em 2008. Por outro lado, ganhou a simpatia de outros componentes da escola, fundamental nas vitórias seguintes. Seu Airton, por exemplo, era o responsável pela distribuição dos convites para os compositores distribuírem entre amigos. A cota era de 50 ingressos para cada participante, mas o baiano levava mais do que o dobro, o que lhe permitia arregimentar torcedores extras na Baixada Fluminense.
- Estava claro que o clima da quadra era um dos quesitos mais importantes para definir os finalistas. Convocávamos a torcida, mandávamos imprimir folhetos para todos decorarem o samba e os esperávamos na entrada da sede do Salgueiro com cafezinho e cachaça. Também mandei fazer bandeirinhas de papel, com as cores da escola, para serem agitadas durante a seleção. A moda pegou – conta o tricampeão, autor de Templo Negro em Tempo de Consciência Negra (1989) e Sou Amigo do Rei (1990).
Com a derrota em 1991, Alaor deixou a escola. Passou a frequentar e fazer samba para o bloco Boêmios de Irajá. No ano seguinte, seguiu para os Estados Unidos para participar de um evento e acaba fundando sua própria escola para exibições em eventos. Lá, gravou seu terceiro CD e casou-se com a atual companheira, Gail O’ Gorman.
Em uma de suas vindas para o Brasil para arregimentar instrumentistas e visitar a filha única, no Rio, resolveu desviar o rumo para Salvador, onde não encontrou vestígios das escolas de samba. Seus planos mudaram. Ele fundou a Lira Imperial e começou a trabalhar para restituir a alegria de antigos bambas e formar nova geração de sambistas, seguindo ao pé da letra o que prometeu em Fruto da Raiz, gravado em 1997: “Vou levantar a bandeira do samba / Eu vou cantar e sambar / Porque o samba não pode acabar”.